Acórdão n.º 117/2008
- Emissor:Tribunal Constitucional
- Tipo de Diploma:Acórdão
- Parte:D - Tribunais e Ministério Público
- Número:117/2008
- Páginas:15915 - 15918
- Sumário
Não julga inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia, enquanto limita o cálculo da indemnização pela perda ou danificação de bagagem registada
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Texto
Acórdão n.º 117/2008
(rectificado através do Ac.133/2008)
Processo n.º 1046/06
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
A - Relatório
1. José António Leão Pereira, advogado, propôs contra a Companhia Air France S. A. uma acção pedindo uma indemnização de (euro)61.734,31 e juros por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da perda de uma mala de viagem num voo Roma-Paris-Lisboa, contratado com a ré. A acção foi julgada improcedente em 1.ª instância e parcialmente procedente na Relação. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 7 de Novembro de 2006, considerando que a responsabilidade pelo extravio da mala estava limitada aos valores previstos no n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia de 1929 (Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional) e que esse montante (calculado em (euro)468) já tinha sido pago, julgou a acção improcedente.
O autor interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, visando a apreciação de constitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia.
2. Prosseguindo o recurso, o recorrente apresentou alegações em que sustentou as seguintes conclusões:
"1- O presente recurso visa a apreciação da inconstitucionalidade da norma contida do artigo 22º, n.º 2, a) (entretanto revogada) da Convenção de Varsóvia de 12 de Outubro de 1929 (Convenção para Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional), por violação do Principio da Igualdade estabelecido no artigo 130; mas principalmente, por violação da norma do artigo 60º, n.º 1 (Direitos dos Consumidores) da Constituição da República Portuguesa.
2 - O artigo 22º, n.º 2, alínea a), da Convenção de Varsóvia estabelecia que: "No transporte de bagagens registadas, a responsabilidade do transportador é limitada à quantia de 17 direitos especiais de saque por kilograma, salvo declaração especial de interesse na entrega no destino feita pelo expedidor no momento de confiar o volume ao transportador e mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual. Neste caso, será o transportador obrigado a pagar até ao limite da quantia declarada, salvo se provar que aquela é superior ao interesse real do expedidor na entrega".
3 - Do acórdão recorrido consta, nomeadamente:
- "O transportador só responderá acima dos limites previstos no artigo 22º, n.º 2, quando o dano resultar do seu dolo, ou da sua culpa, que, segundo a lei portuguesa, for equivalente ao dolo.
- Esta é a excepção à regra do limite da responsabilidade da R., cabendo ao A. o ónus de provar a ocorrência das circunstâncias aí previstas. Não ficou provado que a R. tenha agido dolosamente ou com culpa equivalente ao dolo. Nesta situação, a responsabilidade da R. pelo extravio da mala de viagem do A. está limitada aos valores previstos no n.º 2 do artigo 22º da Convenção, que a R. já lhe liquidou.
- Esta limitação de responsabilidade do transportador e a sua aplicação aos casos de presunção de culpa deste não viola qualquer princípio constitucional, até porque o passageiro tem sempre a possibilidade de não se conformar com este limite, fazendo uma declaração especial de "interesse na entrega" e pagando a taxa suplementar que for devida."
4 - O Recorrente considera aqui reproduzida a matéria de facto dada, definitivamente, por provada na 1ª instância.
5 - A responsabilidade civil das transportadoras aéreas por danos causados no transporte de passageiros, bagagens e mercadorias está regulada, se o respectivo transporte aéreo for considerado internacional, nos termos do n.º 2, do artigo 1º da Convenção de Varsóvia, de 12 de Outubro de 1929, que refere:
..é considerado transporte internacional todo o transporte no qual, de acordo com o que foi estipulado pelas Partes, o ponto de partida e o ponto de destino, quer haja ou não interrupções de transporte ou transbordo, estejam situados quer no território de duas Altas partes contratantes, quer apenas no território de uma Alta parte Contratante, se se previu uma escala no território de um ou outro Estado, mesmo que este Estado não seja uma Alta parte Contratante".
6 - Portugal aderiu formalmente e sem reservas a esta Convenção em 20 de Março de 1947 (crf. Aviso publicado no Diário do Governo 185, 1 Série, de 10/08/1948).
7 - Tratando-se assim de transporte aéreo internacional nos termos do acima citado artigo, a responsabilidade civil das transportadoras aéreas, de Estados signatários da referida Convenção, estava, até 04 de Novembro de 2003, regulada na Convenção e no conjunto de legislações internacionais que a alteraram e tentaram actualizar: Protocolo de Haia de 1955, Convenção de Guadalajara de 1961, Acordo de Montereal de 1966, Protocolo de Guatemala de 1971 e Protocolos 1,2,3, e 4 de Montereal de 1975, conjunto de instrumentos que os juristas designam por "Sistema de Varsóvia".
8 - No caso dos autos, considerando a data da verificação dos factos em apreço, a responsabilidade da Recorrida é determinada pelo "Sistema de Varsóvia".
9 - Segundo o artigo 17º, da Convenção de Varsóvia:
nº 2 - O Transportador é responsável pelo dano resultante da destruição, perda avaria da bagagem, pela simples razão de o evento que causou a destruição, perda ou avaria ter ocorrido a bordo da aeronave ou no decurso de quaisquer operações de embarque ou durante qualquer período em que a bagagem se encontrava à guarda do transportador. O transportador não será, porém responsável se o dano tiver resultado exclusivamente da natureza ou vício próprio da bagagem.
10 - Este artigo estabelece uma presunção contra o transportador, que nos termos do artigo 20º só é exonerado de culpa se provar que ele e os seus propostos tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo ou que lhe era impossível tomá-las.
11 - Dá-se aqui por reproduzida a brilhante fundamentação jurídica que esteve subjacente à decisão constante do douto Acórdão da Relação de Lisboa proferido no presente processo.
12 - O artigo 22º, n.º 2, a), da Convenção de Varsóvia estabelece uma cláusula típica de imposição pela parte forte (transportadora) à parte fraca (passageiro) do pagamento de um seguro que desobriga a transportadora cujo preço da passagem já pressupõe este custo.
13 - A nossa constituição está informada sob a proibição do abuso de poder económico de uma parte sobre outra, cf. artigo 81º, al. e), da CRP.
14 - O princípio da Igualdade proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes.
15 - Interpretar-se que para ser afastado qualquer limite à indemnização estabelecido no artigo 22º, n.º 1 a) da CV, compete ao transportado o ónus da prova que o transportador actuou com dolo ou culpa, é, salvo o devido respeito, estar a condenar ab initio a totalidade dos lesados à mais completa desprotecção legal, penalizando-os sem justificação racional e desproporcionada, pois implica que os riscos do "descaminho" da bagagem em transporte aéreo corram quase exclusivamente por sua conta.
16 - Nestes casos, é praticamente impossível provar a negligência ou o dolo praticado por um qualquer funcionário de uma grande companhia, no âmbito das suas funções de manutenção do fluxo de bagagens num tapete rolante de centenas ou milhares de passageiros num aeroporto.
17 - E, ofende-se o principio de equidade que refere que: aquele que lucra com a situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultante.
18 - As Transportadoras Aéreas não carecem de qualquer protecção especial e o lesado é objecto de um tratamento jurídico manifestamente inferiorizante face às mesmas.
19 - O artigo 22º, n2, a) da CV viola, assim, o artigo 13º, nº2, da nossa Constituição, inconstitucionalidade que aqui se invoca. Além disso,
20 - Os direitos dos consumidores são no nosso actual texto constitucional um direito fundamental que está previsto no artigo 60, n.º 1, da Constituição Portuguesa - "Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação: à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos".
21 - A Constituição da República Portuguesa está informada no sentido de reprimir o abuso de poder económico que sucumbe ao poder empresarial, pois proíbe quaisquer cláusulas abusivas em relação ao consumidor: "Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços e à ...protecção dos seus interesses económicos...", artº 60º, n.º 1 da Constituição da Rep. Portuguesa.
22 - Segundo J.J. Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3º Edição Revista, Coimbra Editora, pág. 323 e segs.,:
"Nesta disposição a Constituição institui os consumidores (bem como as suas organizações especificas) em titulares de direitos constitucionais."
23 - A protecção constitucional dos consumidores surge localizada em sede de direitos fundamentais. Trata-se de direitos que não têm natureza homogénea. Outros, todavia, revestem natureza equiparada à dos «direitos, liberdades e garantias» (cf. artigo 17º CRP), beneficiando do respectivo regime - é o caso do direito à reparação de danos (cf., artigo 60º, n.º 1, in fine) (Canotiho e Vital Moreira).
24 - Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, este direito "traduz-se no direito de indemnização dos prejuízos causados pelo fornecimento de bens ou serviços defeituosos, por assistência deficiente ou por violação do contrato de fornecimento. O Direito à reparação não pressupõe o abandono dos esquemas da responsabilidade contratual de cariz subjectivista mas aponta para a eventual necessidade de um responsabilidade tendencialmente objectivista do produtor pelo produto, de forma a resolver-se o problema da justa distribuição dos riscos inerentes ao consumo de bens produzidos segundo os esquemas técnicos e tecnológicos modernos".
25 - O artigo 2º, n.º 1, da lei da Defesa do Consumidor aprovada pela lei n.º 24/96, de 31 de Junho lei, considera "consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios."
26 - Portanto, o passageiro que vê a sua bagagem extraviada é considerado consumidor, configurando-se, entre o passageiro e a companhia aérea, a relação "consumidor-forneceder-produto-serviço".
27 - Sendo assim, qualquer relação de consumo estará sob a tutela da Constituição (artigos 60º, nº1, 52º, n.º 3, 81º, j), 102º, e), 17º e 18º da C.R.P.)
28 - Segundo o artigo 17º da C.R.P., "O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga".
29 - O artigo 18º da Constituição estabelece a força jurídica destes direitos:
"Nº 1 - Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas".
30 - Deve assim entender-se que a Convenção de Varsóvia face ao artigo 8º, n.º 2 da CRP, vigorava em Portugal, excepto quanto às normas respeitantes à limitação da responsabilidade civil do transportador, uma vez que nelas há uma patente antinomia com a nossa Constituição.
31 - O facto da Convenção de Varsóvia não ter sido denunciada pelo Estado Português (tal como previsto no artigo 39º da Convenção) não quer significar que os limites da indemnização nela previstos prevalecessem, pois que incompatíveis com o artigo 60º, n.º 1, "in fine" da C.R.P..
32 - Consagra-se assim no artigo 60º, nº1, a tutela do direito à indemnização com o escopo de defender e proteger o consumidor por danos decorrente da violação de direitos fundamentais, nomeadamente, por em nada ser beneficiado pela Convenção de Varsóvia.
33 - Razões de protecção social, postuladas pelo que se exige a um Estado de Direito Social, impõem que aos interesses do consumidor se confira adequada protecção, defendendo-o de clausulados abusivos e, muitas vezes, desconhecidos daqueles (maxime, quando se deparam casos de contratos de adesão).
34 - As normas da Convenção de Varsóvia ao serem recepcionadas pela Constituição da República (8º, n.º 2, CRP) dizem respeito somente aquilo que não firam a própria norma mãe, pois não podem restringir direitos consagrados na Constituição.
35 - Ora, resultando do texto da lei Fundamental que, de entre o mais, os consumidores têm direito à reparação de danos, deve entender-se que as normas e cláusulas de limitação dessa reparação se impedirem a ressarcibilidade efectiva de quaisquer categorias de danos (ainda que decorrentes de fonte legal interna ou internacional) podem assumir, em determinados casos, ofensa da ordem pública, se grosseiramente violarem o direito àquela reparação, designadamente nos domínios de prestações por empresas que por escopo têm o fornecimento de serviços e tendo em vista um particular.
36 - A limitação estabelecida no artigo 22º, n.º 2, a) da CV deve, pois, ser considerada por não recepcionada por violar os artigos 13º, e 60º, n.º 1 da CRP. Na verdade,
37 - A Convenção de Varsóvia teve grande importância para a época em que foi regulamentada, porém, actualmente com a elevação do direito do consumidor à reparação de danos como um direito constitucional de natureza fundamental, deve considera-se ultrapassada qualquer limitação ao valor da indemnização (artº 22º, nº 2, a) CV) por violação do artigo 60º, n.º 1 (CRP) e o princípio basilar do nosso ordenamento jurídico - o Principio da Igualdade (13º CRP), pois trata desigualmente as partes contratantes.
38 - E, como tal não pode ser aplicada no nosso ordenamento a limitação estabelecida no seu artigo 22º, n.º 2, a) por ser inconstitucional - cfr - artºs 8º, nº 2, 13º, n.º 1 e 2, 60º, n.º 1, 207º, 277º, n.º 1 e 2, inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos.
39 - Destarte, in casu, se uma norma infraconstitucional - artigo 22º, n.º 2, a) da CV - elimina a possibilidade do ressarcimento quanto a toda a extensão e ou categoria de danos, verificando-se uma conduta inadimplente de uma fornecedora de bens ou serviços (quantas vezes empresas dotadas de grande poder económico a cujos serviços ou prestações de bens recorrem os consumidores sem um perfeito conhecimento das regras que comandam os respectivos contratos de adesão, como é o caso) não poderá tal norma deixar de ser considerada ofensiva do ditame da lei Básica que comanda a ressarcibilidade dos danos sofridos pelos consumidores, ainda que não presentes o dolo ou a culpa grave.
40 - Daqui resultará que o Recorrente tem direito a ser indemnizado, sem a limitação prevista no artigo 22º, n.º 2, a), da Convenção de Varsóvia, por esta ser considerada inconstitucional, estando a Recorrida obrigada a indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais, concretamente, sofridos pelo Recorrente, conforme, aliás, já doutamente decido no Acórdão da Relação de Lisboa, o qual após provimento do presente recurso, deverá ser mantido pelo Supremo Tribunal de Justiça. "
A recorrida contra-alegou, defendo a improcedência do recurso e concluindo nos seguintes termos:
"a) O artigo 13.º da CRP prescreve que todos os cidadãos devem ser tratados de igual forma perante a lei, não podendo ser privilegiados, beneficiados, prejudicados, privados de qualquer direito ou isentos de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social;
b) Ora, a Convenção de Varsóvia e, naturalmente, a alínea a) do n.º 2 do seu artigo 22º, é aplicável a todos os cidadãos, de igual forma, como norma geral e abstracta que é;
c) Com efeito, não se vislumbra - porque não existe - qualquer tratamento diferenciado ou discriminatório de cidadãos em resultado da referida norma da Convenção de Varsóvia, pelo que não se entende como pode a aplicação da mesma violar, de alguma forma, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da C.R.P.;
d) Reforce-se aliás que a Recorrida é apenas uma de entre muitas outras Companhias Aéreas a operar em Portugal, sendo que a alínea a) do n.º 2 do artigo 22º da Convenção de Varsóvia é uma norma que se aplica a todos os voos internacionais entre Estados signatários, e não uma qualquer norma ou disposição contratual aplicável exclusivamente à ora Recorrida, pelo que, definitivamente, tal preceito não é violador do princípio da igualdade;
e) Acresce que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, a alínea a) do n.º 2 do artigo 22º da Convenção de Varsóvia também não viola o artigo 60.º da CRP;
f) Com efeito, ao contrário do defendido pelo Recorrente, a aludida norma da Convenção de Varsóvia não impede a reparação do dano, estabelecendo apenas uma limitação de responsabilidade do transportador;
g) Limitação indemnizatória essa que, para mais, pode ser afastada quer através de uma declaração especial de valor, quer através da alegação e prova de que o dano resultou de dolo ou negligência grosseira do transportador;
h) Por outro lado, o n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (diploma citado pelo Recorrente), estipula que "os bens e os serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhe atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor" (sublinhado nosso);
i) Ora, sucede que a referida limitação de responsabilidade não só resulta expressamente da Convenção de Varsóvia, como também resulta expressamente do título de transporte (juntamente com a possibilidade de ser feita uma declaração especial de valor), sendo como tal do conhecimento do passageiro e expressamente aceite por este aquando da aquisição do serviço;
j) Termos em que, a aplicação da alínea a) do n.º 2, do artigo 22º da Convenção de Varsóvia não viola, manifestamente, o artigo 60.º da CRP."
B - Fundamentos
3. A acção de indemnização de que emerge o presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade visava efectivar a responsabilidade do transportador pela perda de bagagem registada no âmbito de um contrato de transporte aéreo internacional de passageiros. Convieram as partes e os tribunais da causa em que, atendendo ao tipo de contrato (transporte aéreo internacional), à natureza do evento danoso (perda de bagagem) e à data em que ocorreram os factos, ao caso era aplicável o chamado "sistema de Varsóvia", constituído pela Convenção de Varsóvia para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, de 12 de Outubro de 1929 (publicada no Diário do Governo, 1.ª série, de 10 de Agosto de 1948) alterada por sucessivos instrumentos internacionais, designadamente, o protocolo de Haia de 1955 (aprovado para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 45.069, de 12 de Junho de 1963), a Convenção de Guadalajara de 1961, o Protocolo da Cidade da Guatemala de 1971 e os Protocolos Adicionais de Montreal, de 1975 (aprovados para ratificação pelo Decreto n.º 96/81, de 24 de Julho). Note-se, sem que para efeito do presente recurso, limitado à questão de constitucionalidade da versão normativa aplicada e que está processualmente determinada, seja indispensável entrar em maiores detalhes, que nem todos estes instrumentos lograram as ratificações necessárias para entrar em vigor (Cf. o site do Gabinete de Documentação e Direito Comparado, do Ministério da Justiça, http://www.gddc.pt/). Assinale-se ainda que outros aspectos do contrato de transporte aéreo de passageiros e da responsabilidade do transportador por eventos danosos dele decorrentes (diversos da perda, avaria ou atraso na entrega da bagagem) eram objecto de legislação nacional ou comunitária mais favorável ao passageiro do que a emergente da Convenção de Varsóvia e actos adicionais (Aliás, na perspectiva da tutela do consumidor, orientada pelo standard do elevado grau de defesa, a intervenção comunitária em matéria de responsabilidade do transportador aéreo de passageiros é significativa e precursora: cf. Regulamento (CE) n.os 2027/97 do Conselho, de 9 de Outubro de 1997, relativo à responsabilidade das transportadoras aéreas em caso de acidente, Regulamento (CE) n.º 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Maio de 2002, que altera o Regulamento (CE) n.º 2027/97 do Conselho e Regulamento (CE) n.º 785/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, relativo aos requisitos de seguro para transportadoras aéreas e operadores de aeronaves (cf. Mario Lopez Gonzalo, "La Tutela del Passeggero nel Regulamento CE n. 261/2004, Rivista Italiana do Diritto Publico Comunitário, n.º 1, 2006, p. 203 e segs). Por último, pode ainda referir-se que a matéria veio a ser objecto de nova convenção, a Convenção de Montreal para a Unificação de certas Regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em 1999 (Cf. Dario Moura Vicente, "A Convenção de Montreal sobre o Transporte Aéreo Internacional" in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Joaquim Moreira da Silva Cunha, pág. 199, Maria da Graça Trigo, "Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo", Direito e Justiça, Vol. XII, Tomo 2, pág. 72). Retendo só o aspecto que pode interessar à compreensão dos problemas discutidos neste processo, o da responsabilidade por destruição, perda, danificação ou atraso na entrega da bagagem, verifica-se que o novo regime uniforme continua a conter uma regra de limitação da indemnização, agora estabelecida em 1000 "DSE" por passageiro (cf. também o Anexo aditado pelo Regulamento (CE) n.º 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Maio de 2002).
4. O acórdão recorrido considerou que, não se tendo provado dolo ou culpa equiparável por parte do transportador ou seus propostos, o ora recorrente apenas tinha direito, pela perda da mala que fizera seguir como bagagem registada, a uma indemnização calculada nos termos da primeira parte da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia, que dispunha:
"2 - a) No transporte de bagagens registadas e de mercadorias, a responsabilidade do transportador é limitada à quantia de 17 direitos especiais de saque por quilograma, salvo declaração especial de interesse na entrega no destino feita pelo expedidor no momento de confiar o volume ao transportador e mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual.
Nesse caso, será o transportador obrigado a pagar até ao limite da quantia declarada, salvo se provar que ela é superior ao interesse real do expedidor na entrega."
É esta a norma - correspondente à redacção introduzido pelo referido Protocolo Adicional n.º 2 à Convenção de Varsóvia - cuja constitucionalidade o recorrente questiona, por violação do direito constitucional dos consumidores à reparação dos danos (n.º 1 do artigo 60.º da CRP) e do princípio da igualdade (n.º 1 do artigo 13.º da CRP).
Vejamos.
5. O n.º 1 do artigo 60.º da Constituição - deslocando a matéria, a partir da Revisão Constitucional de 1989, para a sede formal dos direitos fundamentais quando anteriormente estava inserida na parte da organização económica (artigo 110.º) - consagra um conjunto de direitos dos consumidores, de evidente radical subjectivo ("... têm direito"), mas de natureza não homogénea: (i) direito à qualidade dos bens e serviços consumidos (ii) direito à formação e informação (iii) direito à protecção da saúde e da segurança (iv) direito à protecção dos interesses económicos e (v) direito à reparação dos danos.
No presente recurso é o direito constitucional do consumidor à reparação dos danos que o recorrente pretende que o Tribunal julgue violado pela norma convencional transcrita, nele se centrando o exame subsequente.
Traduz-se este direito na indemnização dos prejuízos causados pelo fornecimento de bens ou serviços defeituosos, por assistência deficiente ou por violação do contrato de fornecimento ou prestação de serviços e, em geral, por violação dos direitos do consumidor. A constitucionalização do direito de reparação dos danos não pressupõe necessariamente o abandono dos esquemas da responsabilidade de cariz subjectivista, embora exija notas equilibradoras da subalternidade do consumidor na relação económica com o produtor, fornecedor ou prestador, seja no momento de contratar e estabelecer as consequências do incumprimento, seja no momento de demonstrar esse incumprimento ou deficiente cumprimento (p. ex. consagrando presunções de culpa ou responsabilidade tendencialmente objectiva).
No acórdão n.º 650/2004, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 23 de Fevereiro, o Tribunal já teve oportunidade de apreciar, por confronto com este mesmo parâmetro, normas que estabelecem limitações no cálculo do montante a que os consumidores têm direito como indemnização por danos decorrentes do incumprimento ou deficiente cumprimento da prestação por parte do fornecedor ou prestador do serviço, mas que não constituam danos à vida, integridade e saúde.
Apreciando, em fiscalização abstracta sucessiva, normas que estabeleciam limites ao montante da indemnização por prejuízos decorrentes de deficiente prestação do serviço de transporte ferroviário de passageiros e do serviço dos correios, o Tribunal, entendeu desnecessário tomar posição sobre se o direito dos consumidores à reparação dos danos deve ser classificado como análogo aos direitos, liberdades e garantias, para efeito de aplicação, ex vi do artigo 17.º, do regime consagrado no artigo 18.º da Constituição (cf., reconhecendo que o direito à reparação dos danos tem essa natureza e beneficia do correspondente regime de protecção acrescida, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, pág. 780, e Vieira de Andrade "Os Direitos dos Consumidores como direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", Boletim da Faculdade de Direito - Universidade de Coimbra, volume LXXVIII, 2 002, 52 e seguintes). E isto, no essencial, por considerar que, dos termos em que é consagrado o direito constitucional em causa, não resulta que seja vedado ao legislador ordinário efectuar modelações do regime de responsabilidade. O Tribunal entendeu que a Constituição não impõe que a obrigação de indemnizar tenha de ser configurada de modo a que venha sempre a ser ressarcida a totalidade dos danos calculados nos termos gerais da responsabilidade civil, quer do ponto de vista qualitativo (p. ex.: exclusão de danos não patrimoniais ou de lucros cessantes), quer do ponto de vista quantitativo (limitações a forfait do montante da indemnização). O legislador dispõe, em princípio, da liberdade de conformar mais ou menos limitativamente o regime da responsabilidade civil, seja definindo condições para a obrigação de indemnização, seja limitando os danos ressarcíveis. Ponto é, como se disse no acórdão "que, no estabelecimento desses limites, de uma parte, não se venha a tornar desprovido de significado o «núcleo» do direito consagrado na parte final do n.º 1 do artigo 60.º da Constituição, ou seja, que o direito à reparação dos danos dos consumidores, na prática, não venha ser impossibilitado de operar; de outra, que dos limites fixados não resulte um ressarcimento irrisório ou desprezível e, por fim, que, a haver limitações à reparação integral dos prejuízos, sejam elas justificadas pelos interesses em presença".
6. A doutrina desse acórdão, de modo mais chegado quando nele se analisa a constitucionalidade das normas aí em apreço respeitantes à perda, espoliação ou avaria de bens confiados aos serviços dos correios, é largamente transponível para o caso presente. E a tanto não obsta o facto de a limitação da indemnização então analisada ocorrer no âmbito de serviços públicos essenciais ou serviços de interesse económico geral, em que pode encontrar-se justificação constitucional adicional para essa limitação na imposição ao Estado de assegurar, com os recursos disponíveis, a existência de "um serviço público vocacionado a proporcionar a toda a comunidade prestações indispensáveis à sua vivência, sem que, em contrapartida, se lhe exija encargos acentuados", que não valem, ou não valem directamente, quando o fornecimento ou prestação de serviços ocorre em condições normais de mercado.
Com efeito, visto o regime da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia no seu todo, também neste caso pode afirmar-se que não estamos perante uma verdadeira restrição ao direito de reparação dos danos, mas perante uma norma de conformação ou condicionamento da obrigação de indemnizar em função do risco assumido pelas partes no momento de contratar.
Na verdade, o passageiro pode assegurar a indemnização integral dos danos, mesmo em caso de mera negligência do transportador ou seus propostos, mediante uma declaração especial de interesse na entrega no destino feita no momento de confiar o volume ao transportador e mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual. Nesse caso, será o transportador obrigado a pagar uma indemnização até ao limite da quantia declarada, salvo se provar que ela é superior ao interesse real do expedidor na entrega. Vale por dizer que no contrato normal de transporte se pressupõe a aceitação, por parte do passageiro, de que a bagagem que regista não tem valor superior a 17 "direitos especiais de saque" por quilograma, rectius, ao produto do peso da bagagem registada por esse valor unitário. No preço pelo qual o transportador normalmente se dispõe a fazer o transporte do passageiro e da sua bagagem, assumindo as consequências de não conseguir assegurar o resultado por, em algum ponto do complexo circuito das operações de condução da bagagem, ocorrerem factos causadores da sua perda ou danificação, está implícita essa aceitação ou, pelo menos, a correspondente repartição de risco. Se o passageiro pretender contratar noutros termos, faz a declaração correspondente e paga o preço suplementar, assim assegurando que a obrigação de indemnizar em caso de destruição, perda, danificação ou atraso na entrega da bagagem não fique sujeita à cláusula limitativa estabelecida para as condições normais.
7. Este limite não é de tal modo exíguo que atinja o núcleo essencial do direito do consumidor à reparação dos danos e tem justificação razoável nos interesses contraditórios que na situação se confrontam. Aos interesses dos lesados em serem integralmente ressarcidos pelos prejuízos sofridos contrapõe-se o interesse das transportadoras em não serem sobrecarregadas com indemnizações, ou com procedimentos onerosos para preveni-las, que tornem economicamente inviável a sua actividade. Mas há também o interesse dos consumidores em geral em usufruir a preços acessíveis da mais ampla oferta de transporte aéreo internacional, que se veria contrariado pela necessidade de repercutir nos preços o risco para os operadores de transporte aéreo de o preço do bilhete de passageiro o poder fazer incorrer no pagamento de indemnizações elevadas, em situações de mera negligência presumida. E há o interesse dos Estados na existência e funcionamento regular e eficiente de tais serviços a partir e com destino ao território respectivo. O regime convencional corresponde a um equilíbrio razoável entre todos estes interesses (cf., para solução semelhante no âmbito da Convenção de Montreal, Dario Moura Vicente, loc. cit. pág. 206).
Aliás, a limitação da responsabilidade pela danificação ou perda da bagagem registada é susceptível de influenciar, ainda por uma outra via indirecta as tarifas e o funcionamento eficiente do transporte aéreo de passageiros. Com efeito, a existência de um limite à indemnização pela perda ou extravio de bagagem em caso de mera negligência, estabelecido a um nível que torne a formulação de pretensões descabidas ou fraudulentas pouco compensadora, permite que nos procedimentos de despacho os transportadores prescindam de verificações ou declarações prévias e adoptem procedimentos simplificados de entrega da bagagem e de regularização dos conflitos que dificilmente poderiam manter-se se a regra fosse a da ilimitada responsabilidade, mesmo em caso de mera negligência, por deficiente cumprimento num domínio de execução do contrato que, além de ser o de mais frequente conflitualidade no transporte aéreo de passageiros, envolve estruturas e circuitos aeroportuários que escapam ao total controlo do transportador.
Em conclusão, o Tribunal considera que a limitação do cálculo da indemnização pela perda ou danificação de bagagem registada constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 22.º da Convenção de Varsóvia não viola o direito dos consumidores à reparação dos danos, consagrado no n.º 1 do artigo 60.º da Constituição.
8. O que se disse quanto à não violação do direito à reparação dos danos afasta também a alegada violação do princípio constitucional da igualdade. Aliás, mal se entende a invocação do n.º 2 do artigo 13.º da CRP num domínio onde existe parâmetro constitucional específico.
De todo o modo, sempre se dirá que a protecção constitucional dos interesses económicos do consumidor não impõe ao legislador uma opção parcial a favor do consumo, mas o equilíbrio e garantia da igualdade material, sobretudo para prevenção de desequilíbrios contratuais em detrimento do consumidor, por exemplo no caso de contratos de adesão ou de certas cláusulas contratuais gerais, quando não haja negociação individual nem liberdade de estipulação, especialmente quanto a bens e serviços essenciais, e contra métodos agressivos de venda que prejudiquem a avaliação consciente e a formação livre, esclarecida e ponderada da decisão de contratar (Vieira de Andrade, loc cit., pág. 49).
Ora, como se disse, no aspecto que agora interessa da reparação dos danos por perda ou danificação de bagagem, a norma convencional aplicada deixa ao passageiro a opção por assegurar a indemnização integral dos danos mediante a avaliação que faça de que os seus interesses não correspondem aos que são pressupostos na regra geral daquela norma. Ainda que a limitação do montante indemnizatório a favor de uma das partes no contrato fosse "candidato positivo" à equiparação às proibições de discriminação com base nas categorias suspeitas elencadas no n.º 2 do artigo 13.º - e não é, não sendo assimilável a uma discriminação com base na situação económica, que seria a categoria mais próxima, porque a situação económica das partes contratantes não é factor diferenciador - é descabida a conclusão de que a norma convencional não tem fundamento material ou justificação razoável. Como se referiu a propósito do parâmetro constitucional pertinente, visa até objectivos de defesa global do consumidor, obstando a que um dos componentes do preço das viagens aéreas seja a cobertura sistemática de riscos que a generalidade dos casos não justifica (Nos considerandos do Regulamento (CE) n.º 889/2002 justifica-se assim solução semelhante do novo regime uniforme: "(12) A existência de limites de responsabilidade uniformes para a perda, os danos ou a destruição da bagagem e para os prejuízos causados pelos atrasos, aplicáveis a todas as viagens efectuadas por transportadoras comunitárias, garantirá o estabelecimento de regras simples e claras para os passageiros e para as companhias aéreas e permitirá que os passageiros reconheçam a necessidade de fazerem ou não um seguro complementar).
C - Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, condenando o recorrente nas custas, com 25 (vinte e cinco) UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008. - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Gil Galvão.