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Segunda-feira, 25 de Janeiro de 2021

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Jurisprudência
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Acórdão n.º 410/2008

Publicação: Diário da República n.º 185/2008, Série II de 2008-09-24
  • Emissor:Tribunal Constitucional
  • Tipo de Diploma:Acórdão
  • Parte:D - Tribunais e Ministério Público
  • Número:410/2008
  • Páginas:40240 - 40245
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  • Sumário

    Não julga inconstitucional a interpretação segundo a qual o disposto no n.º 3 da base xix da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na redacção da Lei n.º 22/92, de 14 de Agosto, que determina que se o cônjuge sobrevivo de vítima mortal de acidente de trabalho contrair casamento receberá, por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual, não é aplicável se o mesmo passar a viver em união de facto com outrem

  • Texto

    Acórdão n.º 410/2008

    Processo n.º 1141/07

    Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

    1 - Relatório:

    1.1 - Maria Helena Soares Cabral Vilas Boas Moraes Sarmento, Manuel Henrique Soares Cabral Vilas Boas, Abílio Peixoto Vilas Boas Forrester Zamith e Francisco Maria Vilas Boas Forrester Zamith interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 7 de Novembro de 2007, que negou provimento ao recurso de revista por eles interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30 de Outubro de 2006, que, por seu turno, havia negado provimento ao recurso de apelação pelos mesmos interposto contra a sentença do 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Guimarães, de 13 de Junho de 2005, que, em acção especial emergente de acidente de trabalho intentada por Maria Rosa Freitas Teixeira (por si e em representação de seus filhos menores Fábio António Freitas da Silva e Bruno Manuel Freitas da Silva), patrocinada pelo Ministério Público, os havia condenado no pagamento: (i) à autora, da pensão anual e vitalícia de (euro) 1455,33, acrescida de um doze avos no mês de Dezembro de cada ano, com início em 2 de Outubro de 1999 e até à idade da reforma por velhice sem doença física ou mental, e de (euro) 1940,44 a partir da idade da reforma por velhice ou se antes viesse a autora a sofrer de doença física ou mental que afectasse sensivelmente a sua capacidade de trabalho; (ii) aos representados autores, da pensão anual de (euro) 970,22, acrescida de um doze avos no mês de Dezembro de cada ano, com início em 2 de Outubro de 1999, até perfazerem dezoito, vinte e dois ou vinte e cinco anos, enquanto frequentassem, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, sem doença física ou mental, ou sem limite de idade, caso padecessem de doença física ou mental que os incapacitasse sensivelmente para o trabalho; (iii) a todos os autores, do montante de (euro) 768,15, a título de despesas de funeral; (iv) à viúva, (euro) 5,99 de despesas de transporte nas deslocações ao tribunal; e (v) juros de mora, à taxa legal, sobre todas as quantias ainda não pagas.

    De acordo com o requerimento de interposição de recurso, os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade constante do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), «da aplicação da Base XIX da Lei n.º 2127, sem ter em conta as repercussões que para o mesmo decorrem da Lei n.º 135/99, se interpretadas no sentido de, passando o cônjuge sobrevivo do sinistrado, falecido em acidente de trabalho, a viver em união de facto com outrem, não lhe ser aplicável o n.º 3 da primeira daquelas duas disposições legais», na parte em que determina que «se a viúva [de vítima mortal de acidente de trabalho] passar a segundas núpcias, receberá, por uma só vez, o triplo da pensão anual» a que tem direito nos termos do n.º 1, alínea a), da mesma Base.

    1.2 - A alegação apresentada pelos ora recorrentes no recurso de revista endereçado ao STJ foi sintetizada nas seguintes conclusões:

    «I - A entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 29 de Agosto, procedendo à equiparação para efeitos de prestações por morte do unido de facto sobrevivo ao cônjuge sobrevivo, estendeu ao primeiro, quer a atribuição do direito (Base XIX, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965), quer as condições e limitações do exercício desse mesmo direito (Base XIX, n.º 3, da Lei n.º 2127).

    II - Ao desconsiderar a circunstância de a autora viver em união de facto com outro homem - há mais de 2 anos quando foi proferida a primeira sentença, há mais de 5 anos quando da segunda sentença na primeira instância e há mais de 6 aquando da prolação do acórdão recorrido - para efeitos do cálculo das prestações por morte, o Tribunal da Relação não considerou a entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e a sua aplicação à Lei n.º 2127.

    III - Provado que foi que a autora vive, pelo menos desde Agosto de 2000, em união de facto com outro homem, o Tribunal recorrido dever-lhe-ia ter concedido, nos termos do n.º 3 da referida Base XIX da Lei n.º 2127, de uma só vez, o montante equivalente ao triplo da pensão anual.

    IV - A alínea a) do n.º 1 e do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127, na interpretação que lhes foi dada pelo acórdão recorrido, no sentido de apenas proceder à extensão aos unidos de facto da previsão daquele normativo e não das condições do respectivo exercício (n.º 3 daquela norma), operada pela entrada em vigor da Lei n.º 135/99, é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite tratar de forma mais favorável os beneficiários de prestações por morte em acidente de trabalho que venham a contrair união de facto do que os que venham a contrair novo casamento, ao arrepio também do disposto no artigo 36.º do Diploma Fundamental.

    V - Quando a razão de ser da atribuição de prestações por morte ao cônjuge sobrevivo e ao unido de facto sobrevivo se baseiam na perda do 'amparo' que o falecido trazia para a vida familiar e que por virtude da sua morte aqueles deixam de auferir (cf., neste sentido, o recente acórdão da Relação de Coimbra, de 28 de Março de 2006).

    VI - E o fundamento daquelas prestações - que normalmente, se não forem remidas, se estendem por vários anos - a que aludia o n.º 3 do Base XIX da Lei n.º 2127 e a que agora alude o artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97 está justamente no facto de o sobrevivo (cônjuge ou unido de facto) ter na data em que as pensões hão-de ser pagas encontrado novo amparo, seja por casamento, seja por união de facto.

    VII - A viúva apenas tem direito a receber as prestações correspondentes ao período de tempo entre a morte do seu cônjuge (1 de Outubro de 1999) e a data em que passou a viver em união de facto com outro homem, como se fossem marido e mulher (Agosto de 2000), acrescidas por referência a essa data do triplo da pensão anual.»

    1.3 - O acórdão do STJ, de 7 de Novembro de 2007, ora recorrido, negou a revista e desatendeu a arguição de inconstitucionalidade suscitada pelos recorrentes, com base na seguinte fundamentação:

    «3 - Resulta das 'conclusões' dos impugnantes do recurso principal que a questão que os mesmos pretendem ver submetida ao escrutínio deste Supremo Tribunal se liga, essencialmente, em saber se a autora, pelo facto de passar a viver em união de facto com outro homem, tem direito, desde essa vivência, a que lhes sejam concedidas as prestações devidas pela morte do sinistrado ou, ao invés, se lhe não haveria somente de ser concedido o montante previsto no n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, sendo que os mesmos recorrentes entendem que a interpretação que foi perfilhada no acórdão recorrido, no sentido de a previsão da equiparação, para efeitos de atribuição de prestações por morte do cônjuge ao unido de facto, previsão essa operada pela Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, se estender tão-só à concessão do benefício e não já às condições do respectivo exercício, seria manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na medida em que permite tratar mais favoravelmente os beneficiários que venham a contrair união de facto, referentemente aos que venham a contrair casamento.

    Tendo em conta o que se prescreve no artigo 41.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, a data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril (cf. seu artigo 71.º, n.º 1), e a data da ocorrência do acidente de que versam os presentes autos [1 de Outubro de 1999], não será a disciplina jurídica emergente daqueles diplomas a aplicável ao caso em apreço, mas sim a legislação que a esta última data vigorava, designadamente, no que agora mais importa, a Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965.

    4 - De harmonia com o dispositivo ínsito na primeira parte do n.º 3 da Base XIX daquela Lei n.º 2127, se a viúva (que, de acordo com o n.º 1, alínea a), terá jus, em caso de acidente de que resulte a morte do seu marido, caso se tiver casado antes do acidente, a uma pensão anual de 30 por cento da retribuição base da vítima até perfazer 65 anos, e 40 por cento a partir desta idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho) passar a segundas núpcias, receberá, por uma só vez, o triplo da pensão anual.

    Nesse diploma, atento o contexto temporal e social em que foi editado, não se previa que, nas situações de infortúnio laboral de que resultasse a morte do trabalhador acidentado e estando este ligado a outrem por vínculo não matrimonial, quem com o mesmo estivesse unido de facto iria desfrutar, por algum modo, de benefício similar àquele que era titulado pelo cônjuge na constância do matrimónio aquando do acidente (ou o cônjuge divorciado ou judicialmente separado à data do acidente, mas que tivesse direito a alimentos - cf. alínea c) do n.º 1 da falada Base XIX).

    Porventura no entendimento de acordo com o qual o que vem consagrado no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição abarca dois direitos, justamente o direito de constituir família e o direito de contrair casamento - não admitindo, por isso, nesse entendimento, a Lei Fundamental que o conceito de família se circunscreva somente à denominada 'família matrimonial» esteada na celebração ou produto do negócio jurídico do casamento, tal como é legalmente erigido - , foi, no que agora interessa, editada a Lei n.º 135/99, de 29 de Agosto, que intentou regular a situação jurídica das pessoas de sexo diferente e que vivam em união de facto (cf. seu artigo 1.º).

    De entre as suas variadas disposições, prescreveu-se no seu artigo 3.º, alínea g), que quem viva em união de facto tem direito à prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da lei.

    Perante este direito conferido pela lei ordinária, não se postam grandes dúvidas em como, a partir da vigência do diploma onde o mesmo veio a ficar consagrado, o regime de atribuição das pensões por acidentes de trabalho ou doença profissional que vitimasse um trabalhador (ou uma trabalhadora) que era, pela legislação vigente, atribuído ao cônjuge (no sentido jurídico próprio) sobrevivo era extensível à unida (ou ao unido) de facto.

    Tudo se passava, pois, ainda no domínio da Lei n.º 2127, como se a disposição vertida nas alíneas a) e b) do n.º 1 da sua Base XIX abarcassem as asserções 'Viúva, se tiver casado antes do acidente, ou unida de facto antes do acidente: ... ' e 'Viúvo, se tiver casado antes do acidente, ou unido de facto antes do acidente ...' (cf., hoje, o artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 100/97).

    Não estando, por conseguinte, em causa a atribuição de tal direito, a questão, porém, que é colocada neste recurso é se dessa atribuição haverá, indissoluvelmente, de resultar que as condições, modos e, quiçá, constrição do respectivo desfrute são, também elas, aplicáveis aos unidos de facto.

    Neste particular é totalmente silente a Lei n.º 135/99.

    Porém, sustentam os impugnantes do recurso principal que, ao menos, aquilo que, agora na perspectiva deste Supremo Tribunal, poderá ser visualizado como uma forma de constrição resultante do n.º 3 da aludida Base XIX da Lei n.º 2127, deverá também ser aplicável quando se trate de uma situação de união de facto ou, se se quiser, de família não suportada em matrimónio, sob pena de ser ofendido o princípio da igualdade que é postulado pelo artigo 13.º do Diploma Básico, na medida em que, sem tal aplicação, se iria, irremediavelmente, discriminar de forma negativa os unidos por casamento.

    Será assim?

    5 - Na óptica dos recorrentes principais, se bem se entende a mesma, a ratio daquele n.º 3 da Base XIX funda-se na circunstância de a morte do acidentado representar a perda de um benefício económico do casal unido por vínculo matrimonial, advindo dos rendimentos de quem faleceu em consequência do acidente de trabalho ou doença profissional; ora, ainda segundo aquela óptica, parece querer apontar-se que, pela ulterior união, por casamento, de acordo com o elemento literal daquele preceito, uma tal perda deixaria, pelo menos em abstracto, ou, se assim se quiser, por normalidade, de ter lugar, por isso que o posteriormente unido por casamento iria contribuir economicamente para o trem de vida do 'casal'; e, sendo assim, ainda na esteira do entendimento dos impugnantes principais, motivos não haveria para distinguir as situações nos casos em que a ulterior união não fosse decorrente do casamento, já que também quem viesse a ficar unido de facto serviria de 'amparo' ao cônjuge supérstite.

    Mesmo aceitando que seja defensável a razão de ser daquele n.º 3, o que, desde já se adianta, se não pode aceitar é a consequência das primeiras proposições do raciocínio dos recorrentes principais.

    Viu-se já que para eles a não extensão do regime - tal como se encontra textualmente consagrado em tal preceito - ou, numa outra perspectiva, a interpretação das disposições conjugadas do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127 e da alínea g) do artigo 3.º da Lei n.º 135/99, interpretação essa de harmonia com a qual, passando o cônjuge sobrevivo a viver em união de facto com outrem, não lhe seria aplicável aquele n.º 3 da referida Base XIX, representaria uma manifesta inconstitucionalidade por postergação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Lei Fundamental, na medida em que iria permitir tratar de forma mais favorável esse cônjuge, comparativamente com uma situação em que o cônjuge, posteriormente, veio a contrair matrimónio.

    Tendo-se acima adiantado o não acompanhamento deste ponto de vista, é momento de se explicitarem as razões da dissensão.

    O princípio da igualdade, como sabido é, reclama a dação de igual ou idêntica solução legal para situações iguais ou idênticas, reclamando, do mesmo passo, a adopção de soluções diversas quando as situações a contemplar sejam, elas mesmas, dissonantes.

    Como, verbi gratia, se referiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 319/2000 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º volume, pp. 497 e seguintes), em que se levou a efeito uma síntese da jurisprudência constitucional a propósito deste princípio postulante do nosso Diploma Básico e outrossim indesligável do princípio do Estado de direito democrático:

    [Omite-se a transcrição]

    Por outro lado, e à guisa de sustentação da admissibilidade das denominadas 'discriminações positivas', aquele órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa teve ocasião de exarar no seu Acórdão n.º 232/2003 (ob. cit., 56.º volume, p. 7 e seguintes):

    [Omite-se a transcrição]

    Os subsídios que se podem, e devem, extrair das indicações jurisprudenciais acima exemplificadas e da doutrina neles citada apontam para que, no caso que nos ocupa, concluamos pela não insolvência constitucional da interpretação normativa que é questionada pelos recorrentes principais.

    5.1 - Na verdade, e muito embora se admitia, aliás sem o mínimo rebuço, que a Constituição admite o direito de constituir família sem base matrimonial, não deixa ela, porém, de dar relevo específico à erigida com base no casamento, até porque a respectiva contracção é, também ela, um direito, análogo aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, consagrado, como se viu, no n.º 1 do seu artigo 36.º Por isso se pode dizer, com Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p. 399), que da 'relevância assim atribuída ao casamento - e do reconhecimento (subjacente à importância constitucional conferida aos requisitos, forma de celebração e efeitos do casamento no artigo 36.º, n.º 2) do carácter institucional da relação conjugal adveniente da assunção de um vínculo de natureza pública através da celebração do casamento - resulta, concretamente, que, para o legislador constitucional, o casamento é o quadro institucional mais favorável em que a família se pode desenvolver'.

    Ora, conquanto reconhecendo o legislador constitucional - e, na sua senda, o legislador ordinário - valia às uniões de facto, o certo é que existem diferenças de regimes entre elas e as baseadas no matrimónio.

    Os unidos de facto, porque assim o desejaram, não estão legalmente adstritos ou vinculados, por entre outros, aos deveres jurídicos específicos de coabitação, cooperação e assistência, neste se incluindo, direccionado para os unidos pelo casamento, a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (cf. artigos 1672.º e 1675.º do Código Civil).

    Temos, pois, como líquido que foi com base neste último dever que foi consagrado o n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127.

    De facto, se, pela contracção de posterior casamento, o cônjuge sobrevivo do acidentado mortalmente tem o direito de exigir do seu novo cônjuge a prestação de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar, ou seja, tem o direito de exigir aquilo que os impugnantes principais designam por 'amparo', é razoável que o legislador, perante essa realidade de facto e jurídica, gizasse aquele normativo.

    Simplesmente, esse direito - e correspondente obrigação por banda do outro unido - inexiste nos casos de união de facto. O 'amparo' (para se utilizar a expressão empregue pelos recorrentes) que porventura pode ser prosseguido pela nova união de facto repousa, e tão-só, na livre vontade do 'novo membro do casal assim formado', não podendo suportar-se juridicamente qualquer pretensão a título de assistência a ele dirigida pelo cônjuge sobrevivo do acidentado.

    Trata-se, assim, de situações diversas que, pela circunstância de o serem, não podem reclamar, sem mais, um tratamento análogo, justificando-se, por isso, a 'discriminação indirecta' positiva que se extrai do n.º 3 da Base XIX já mencionada, assente em critérios de razoabilidade, racionalidade, coerência e congruência com o sistema jurídico global, designadamente o que se encontra previsto para o regime do casamento e dos deveres que desse regime promanam.

    Claro que poderia talvez o legislador enveredar por outra via, adoptando, para as uniões de facto contraídas posteriormente ao decesso do acidentado, regulação idêntica à que existe para os unidos por vínculo matrimonial, regulação essa que, na interpretação normativa acolhida pelo acórdão recorrido, não é extensível àquelas uniões (e sem que com isto se queira significar que, ao fazê-lo, estava a efectuar uma 'igualização' que, em face da diversidade de situações, não era, de todo, passível de um juízo de insolvência constitucional).

    Simplesmente, esse não enveredar é que, no entendimento deste Supremo, não é censurável por postergação de normas ou princípios constitucionais, nomeadamente a ofensa ao princípio da igualdade.

    Por conseguinte, entende-se ser de manter a interpretação normativa em que se ancorou o acórdão impugnado que, assim, se deve manter, pelo que, em consequência, não deve a pensão atribuída à autora ser fixada nos termos do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127.»

    1.4 - Neste Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações, sintetizadas nas seguintes conclusões:

    «I - A entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, procedendo à equiparação para efeitos de prestações por morte do unido de facto sobrevivo ao cônjuge sobrevivo, estendeu ao primeiro, quer a atribuição do direito (Base XIX, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965), quer as condições e limitações do exercício desse mesmo direito (Base XIX, n.º 3, da Lei n.º 2127).

    II - Ao desconsiderar a circunstância de a autora viver em união de facto com outro homem - há mais de 2 anos quando foi proferida a primeira sentença, há cerca de 5 anos quando da segunda sentença na primeira instância, há mais de 6 anos aquando da prolação do acórdão da Relação do Porto e há quase 8 anos na data do acórdão recorrido - para efeitos do cálculo das prestações por morte, o Supremo Tribunal de Justiça não considerou a entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, e a sua aplicação à Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965.

    III - Provado que foi que a autora vive, pelo menos desde Agosto de 2000, em união de facto com outro homem, o Tribunal recorrido dever-lhe-ia ter concedido, nos termos do n.º 3 da referida Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, de uma só vez, o montante equivalente ao triplo da pensão anual.

    IV - A Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na interpretação que lhe foi dada pelo douto acórdão recorrido, no sentido de apenas proceder à extensão aos unidos de facto dos direitos daquele normativo (alínea a) do n.º 1) e não as condições e ou limitações do respectivo exercício (n.º 3 daquela norma), operada pela entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite tratar de forma mais favorável os beneficiários de prestações por morte em acidente de trabalho que venham a contrair união de facto do que os que venham a contrair novo casamento, ao arrepio também do disposto no artigo 36.º do Diploma Fundamental.

    V - A interpretação dada pelo douto acórdão recorrido ao artigo 56.º do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, não permite tirar do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, qualquer aplicabilidade, quer em caso de novo casamento, quer em caso de posterior união de facto, pois obrigaria a que o novo enlace se tivesse de realizar no próprio dia do óbito.

    VI - E o fundamento da limitação daquelas prestações - que normalmente, se não forem remidas, se estendem por vários anos - a que aludia o n.º 3 da Base XIX da Lei 2127 e a que agora alude o artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, está justamente no facto de o sobrevivo (cônjuge ou unido de facto) ter, na data em que as pensões hão-de ser pagas, encontrado novo amparo, seja por casamento, seja por união de facto.

    VII - Quando a razão de ser da atribuição de prestações por morte ao cônjuge sobrevivo e ao unido de facto sobrevivo se baseiam na perda do 'amparo' que o falecido trazia para a vida familiar e que por virtude da sua morte aqueles deixam de auferir.

    VIII - O douto acórdão recorrido, ao sustentar que a diferenciação positiva da união de facto face ao casamento se funda na não obrigação de alimentos que o novo unido de facto tem relativamente ao viúvo, esquece completamente o disposto nos n.º 1 e 3 do artigo 20.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, publicada dois anos antes da morte e que apenas por atraso na respectiva regulamentação só entrou em vigor três meses após esta.

    IX - Se a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, não previa expressamente a equiparação das limitações ou condições de exercício do direito, e cremos que o fazia, impunha-se que o Supremo Tribunal de Justiça tivesse tido em conta a necessária equiparação entre casamento e união de facto não só quanto aos direitos do sobrevivo a acidente de trabalho mas também quanto às condições ou limitações em que tal direito pode ser exercido pelo mesmo.

    X - Não o tendo feito, isto é, a decisão recorrida, ao ter aplicado a lei apenas no que concerne à atribuição do direito sem ter em conta as limitações ou condições do respectivo exercício (Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na parte em que foi alterada pela Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto), é manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da protecção da família e do casamento, previstos, respectivamente, nos artigos 13.º e 36.º da CRP.

    XI - Princípio da igualdade esse igualmente violado com a inadmissível discriminação entre os beneficiários por acidentes de trabalho ao abrigo da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, e aqueles que o forem ao abrigo da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro,

    XII - De forma intolerável nos presentes autos, em que a morte ocorreu apenas 3 meses antes da entrada em vigor da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e a viúva passou a viver com outro homem como se fossem marido e mulher escassos 7 meses após essa data.

    XIII - A viúva apenas tem direito a receber as prestações correspondentes ao período de tempo entre a morte do seu cônjuge (1 de Outubro de 1999) e a data em que passou a viver em união de facto com outro homem como se fossem marido e mulher (Agosto de 2000), acrescidas por referência a essa data do triplo da pensão anual.»

    1.5 - O representante do Ministério Público neste Tribunal contra-alegou, concluindo:

    «1.º Não é legítimo extrair do princípio da igualdade ou de qualquer outro preceito ou princípio constitucional a regra da equiparação total, no que respeita aos efeitos jurídicos a atribuir à relação matrimonial e à mera convivência em união de facto, sendo perfeitamente legítimo ao legislador infraconstitucional, no exercício da sua margem de livre discricionariedade legislativa, regular, em termos diferenciados e autónomos, as matérias de concessão de certo direito ao unido de facto com o lesado e da preclusão desse beneficio, como decorrência de o beneficiário da pensão alterar a sua situação familiar.

    2.º Não é, deste modo, inconstitucional a interpretação normativa que, baseada na aplicação do regime dos acidentes de trabalho constante da Lei n.º 2127, considera que a circunstância de o viúvo do sinistrado ter passado a conviver, em união de facto, com outrem não conduz à preclusão do integral recebimento da pensão, nos termos originariamente outorgados.»

    Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

    2 - Fundamentação:

    2.1 - Constituem soluções tradicionais do direito português de acidentes de trabalho a previsão, para os casos em que do acidente tiver resultado a morte do trabalhador sinistrado, da atribuição de indemnizações, sob a forma de pensões, a determinadas categorias de seus familiares, e, bem assim, a previsão da cessação dessa atribuição relativamente aos cônjuges sobrevivos, verificadas determinadas situações.

    Assim, a Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, previa, no artigo 16.º, a atribuição: (i) à viúva, de uma pensão de 25 % do salário anual, enquanto se mantivesse no estado de viuvez, perdendo esse direito se passasse a viver em mancebia ou tivesse porte escandaloso, e recebendo, por uma só vez, o triplo da pensão anual, se passasse a segundas núpcias; (ii) ao viúvo, da mesma pensão de 25 %, nos referidos termos, quando se provasse que estavam a cargo da mulher os seus alimentos; (iii) ao cônjuge que se achasse divorciado ou judicialmente separado da vítima à data do acidente, com direito a receber alimentos, da mesma pensão referida nos itens anteriores e nos mesmos termos; (iv) aos filhos menores de 16 anos, 15 %, 30 % ou 40 % sobre o salário anual, consoante houvesse apenas um, fossem dois ou fossem três ou mais (percentagens que se elevavam para 25 %, 45 % e 60 % se fossem órfãos de pai e mãe); e (v) na falta de filhos ou cônjuge sobrevivo, aos ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis menores de 16 anos, desde que a alimentação de uns e outros estivesse a cargo das vítimas, de 10 % do salário anual, a cada um, não podendo, porém, a totalidade da pensão exceder 40 % do salário, procedendo-se a rateio se houvesse mais de 4 familiares. Na base da atribuição destas pensões estava o propósito de compensar esses familiares do prejuízo decorrente da perda de rendimentos derivada da morte do trabalhador sinistrado, exigindo-se, nuns casos (viúvo, cônjuge divorciado ou separado judicialmente, ascendentes e outros parentes), a prova de que o sinistrado falecido lhes prestava alimentos, e, noutros casos (viúva e filhos), presumindo-se legalmente essa prestação.

    Os traços fundamentais deste sistema e a sua apontada justificação foram mantidos na redacção originária da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, que substituiu a Lei n.º 1942, dispondo na sua Base XIX:

    «1 - Se do acidente resultar a morte, os familiares da vítima receberão as seguintes pensões anuais:

    a) Viúva, se tiver casado antes do acidente: 30 por cento da retribuição-base da vítima até perfazer 65 anos, e 40 por cento a partir desta idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho;

    b) Viúvo, se tiver casado antes do acidente e estiver afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho, ou se for de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher, enquanto se mantiver no estado de viuvez: 30 por cento da retribuição-base da vítima;

    c) Cônjuge divorciado ou judicialmente separado à data do acidente, com direito a alimentos: a pensão estabelecida nas alíneas anteriores e nos mesmos termos, até ao limite do montante dos alimentos;

    d) Filhos legítimos ou legitimados, incluindo os nascituros, nas condições da lei civil, até perfazerem 18 anos, ou 21 e 24 enquanto frequentarem, com aproveitamento, respectivamente, o ensino médio ou superior, e os afectados de doença física ou mental que os incapacite para o trabalho: 20 por cento da retribuição-base da vítima se for apenas um, 40 por cento se forem dois e 50 por cento se forem três ou mais, recebendo o dobro destes montantes, até ao limite de 80 por cento do salário da vítima, se forem órfãos de pai e mãe;

    e) Ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis até aos 18 anos, ou 21 e 24 enquanto frequentarem, com aproveitamento, respectivamente, o ensino médio ou superior, ou sem limite de idade quando afectados de doença física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho, desde que a vítima contribuísse, com carácter de regularidade, para a sua alimentação: a cada um 10 por cento da retribuição-base da vítima, não podendo o total das pensões exceder 30 por cento.

    2 - (...)

    3 - Se a viúva passar a segundas núpcias, receberá, por uma só vez, o triplo da pensão anual. Se tiver porte escandaloso, perderá o direito à pensão.

    4 - (...)

    5 - (...).»

    A jurisprudência do Tribunal Constitucional desde sempre (cf. Acórdãos n.º s 181/87, 449/87, 72/88 e 104/88) se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, da diferenciação de tratamento entre viúvas e viúvos, resultante das alíneas a) e b) do n.º 1 desta Base, considerando que essa diferenciação, ainda que pudesse ter alguma justificação histórica, dado o desfavorecimento da mulher no mercado de trabalho, surgia actualmente em clara dessintonia com a realidade social e jurídica, uma vez que, quer ao nível fáctico, quer ao nível jurídico, as diferenças entre homens e mulheres trabalhadoras tem vindo a diluir-se. Por isso, aquela distinção radicava fundamentalmente no sexo e, sendo objectivamente injustificável e irrazoável, violava o princípio da igualdade, tal como, em termos materiais, o artigo 13.º da CRP o afirma. Esta jurisprudência culminou com a prolação do Acórdão n.º 191/88, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 1 da Base XIX da Lei n.º 2127, «na parte apenas em que atribui ao viúvo, em caso de falecimento do outro cônjuge em acidente de trabalho, e havendo casado previamente ao acidente, uma pensão anual de 30 por cento da retribuição-base da vítima, e isto desde que esteja afectado de doença física ou mental que lhe reduza sensivelmente a capacidade de trabalho, ou seja de idade superior a 65 anos à data da morte da mulher».

    Na sequência desta decisão, a Lei n.º 22/92, de 14 de Agosto, alterou a redacção da Base XIX da Lei n.º 2127, que passou a dispor:

    «1 - Se do acidente de trabalho ou da doença profissional resultar a morte, os familiares da vítima receberão as seguintes pensões anuais:

    a) Cônjuge - 30 % da remuneração base da vítima até perfazer a idade de reforma por velhice e 40 % a partir daquela idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho;

    b) Cônjuge divorciado ou separado judicialmente à data do acidente e com direito a alimentos - o valor da pensão estabelecida na alínea a) até ao limite do quantitativo dos alimentos judicialmente fixado;

    c) Filhos, incluindo os nascituros, até perfazerem 18 ou 22 e 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, e os afectados de doença física ou mental que os incapacite para o trabalho - 20 % da retribuição-base da vítima se for apenas um, 40 % se forem dois, 50 % se forem três ou mais, recebendo o dobro destes montantes, até ao limite de 80 % da retribuição da vítima, se forem órfãos de pai e mãe;

    d) Ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis, estes até aos 18 ou 22 e 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade quando afectados de doença física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho, desde que a vítima contribuísse com regularidade para o seu sustento - a cada, 10 % da retribuição-base da vítima, não podendo o total das pensões exceder 30 % desta.

    2 - (...)

    3 - O cônjuge sobrevivo que contraia casamento tem direito a receber, por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual.

    4 - (...)

    5 - (...).»

    Foi o resultante desta redacção da Base XIX da Lei n.º 2127 o regime legal que o acórdão recorrido considerou aplicável ao caso dos autos, por ter entendido que, atenta a data do acidente (1 de Outubro de 1999), era ininvocável o regime da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, que, nos termos do artigo 41.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 100/97, só se aplica aos acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 142/99, o que, por força do Decreto-Lei n.º 382-A/99, de 22 de Setembro, só veio a ocorrer em 1 de Janeiro de 2000. Apesar da sua inaplicabilidade ao caso dos autos, interessa referir que o artigo 20.º da Lei n.º 100/97 dispõe:

    «1 - Se do acidente resultar a morte, as pensões anuais serão as seguintes:

    a) Ao cônjuge ou a pessoa em união de facto: 30 % da retribuição do sinistrado até perfazer a idade de reforma por velhice e 40 % a partir daquela idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho;

    b) Ao ex-cônjuge ou cônjuge judicialmente separado à data do acidente e com direito a alimentos: a pensão estabelecida na alínea anterior e nos mesmos termos, até ao limite do montante dos alimentos fixados judicialmente;

    c) (...)

    d) (...)

    2 - (...)

    3 - Qualquer das pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que contraia casamento ou união de facto receberá, por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual, excepto se já tiver ocorrido a remição total da pensão.

    4 - (...)

    5 - (...)

    6 - (...)»

    O n.º 2 do artigo 49.º do Decreto-Lei n.º 143/99 veio precisar que «para efeitos do disposto no artigo 20.º da lei, são consideradas uniões de facto as que preencham os requisitos do artigo 2020.º do Código Civil».

    2.2 - Descrita a evolução do regime legal de atribuição de pensões no caso de acidentes de trabalho mortais, cumpre agora indagar a relevância jurídica das situações de união de facto, desde logo na perspectiva constitucional.

    A este respeito, e quer se busque apoio - como este Tribunal tem feito (cf. Acórdão n.º 275/2002), na esteira da posição de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, p. 561) - no artigo 36.º, n.º 1, da CRP, que, ao distinguir o direito de constituir família e o direito de contrair casamento, não permitiria «a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento», decorrendo desse preceito «uma abertura constitucional - se não mesmo uma obrigação - para conferir o devido relevo jurídico às uniões familiares 'de facto'», quer se prefira invocar - como propugnam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª edição, 2008, pp. 55-58; cf. votos de vencido apostos aos Acórdãos n.º s 86/2007 e 87/2007) - o direito ao desenvolvimento da personalidade, que a revisão constitucional de 1997 reconheceu de modo explícito no n.º 1 do artigo 26.º, já que «estabelecer uma união de facto é certamente uma manifestação ou forma de exercício desse direito», pelo que «a legislação que proibisse a união de facto, que a penalizasse, impondo sanções aos membros de relação e coarctando de modo intolerável o direito de as pessoas viverem em união de facto, seria (...) manifestamente inconstitucional», é seguro que a Constituição não impõe uma equiparação total de direitos e deveres entre os casados e os unidos de facto, existindo, neste domínio, uma ampla margem de liberdade de conformação do legislador ordinário.

    No domínio que especialmente interessa ao objecto do presente recurso, foi a Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto, que adoptou várias medidas de protecção da união de facto, que veio, no seu artigo 3.º, expressamente reconhecer, pela primeira vez, que «quem vive em união de facto tem direito a: (...) g) Prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da lei; (...)» [O acórdão do STJ, de 22 de Março de 1995, proc. n.º 3878, disponível em www.dgsi.pt/jstj, não reconheceu a quem vivia em união de facto com o trabalhador vítima de acidente mortal o direito à pensão prevista na Base XIX da Lei n.º 2127, argumentando, além do mais, que o legislador da Lei n.º 22/92, que alterou a redacção dessa Base, não podia deixar de conhecer a existência de uniões de facto (definidas na revisão do Código Civil de 1977), a par de relações matrimoniais, e, apesar disso, optou por apenas atribuir a pensão por morte ao cônjuge do trabalhador sinistrado.]

    A explicitação desse direito dos unidos de facto à prestação por morte resultante de acidente de trabalho foi mantida no artigo 3.º, alínea f), da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, precisando agora o subsequente artigo 6.º, n.º 1, que beneficia desse direito quem reunir as condições constantes do artigo 2020.º do Código Civil.

    Mas essas disposições não versam directamente sobre a situação em causa no presente recurso: elas atribuem aos unidos de facto o direito a perceber pensão no caso de morte, por acidente de trabalho, do outro membro da união, e do que ora se trata é de saber se, adquirido pelo cônjuge (ligada pelo casamento) do trabalhador falecido o direito à pensão, em princípio vitalícia, este direito é substituído (o que, em termos práticos, significará uma redução do benefício) pela percepção, de uma só vez, do triplo do montante anual da pensão caso ele venha a estabelecer uma relação de união de facto, tal como ocorreria se contraísse novo casamento.

    O acórdão recorrido respondeu negativamente a essa questão e o que está em causa no presente recurso não é apurar se essa é, ou não, a mais correcta interpretação do direito ordinário, mas, assumindo esta interpretação como um dado da questão, apreciar se a mesma ofende, designadamente, o princípio da igualdade, por estabelecer uma diferenciação de tratamento constitucionalmente injustificada.

    Poderia sustentar-se que, atendendo à razão de ser da atribuição da pensão a familiares do trabalhador falecido - que, como vimos, consistia na compensação da perda de rendimentos que para o familiar derivou da morte do trabalhador e que, por isso, ou dependia da prova de que este prestava alimentos ao familiar em causa (casos dos cônjuges divorciados ou separados judicialmente, ascendentes e outros parentes) ou da presunção legal dessa prestação (casos dos cônjuges e dos filhos) - seria mais coerente com a atribuição de similar direito ao unido de facto (atribuição que radicaria na presunção de que ele receberia assistência do outro membro) que, também no caso de contracção de união de facto por parte do viúvo ou viúva do trabalhador falecido, se procedesse à substituição da pensão (vitalícia) pela percepção de uma vez só do triplo do montante anual da pensão, como sucede com a contracção de novo casamento, pois a razão desta «redução» do benefício estará, neste caso, no entendimento de que o novo cônjuge do titular da pensão passará a contribuir para as suas despesas.

    Acontece, porém, que o acórdão recorrido considerou - e a inexistência de disposições legais expressas sobre a matéria legitima tal entendimento - que existe uma diferença jurídica relevante entre, por um lado, a situação dos cônjuges, que estão reciprocamente vinculados pelo dever de assistência (artigo 1672.º do Código Civil), que compreende «a obrigação de pagar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar» (artigo 1675.º, n.º 1, do mesmo Código) e, por outro lado, a situação dos unidos de facto, relativamente aos quais esse dever de assistência, na constância da relação, não está legalmente consagrado. Dos diversos Projectos de Lei apresentados sobre a matéria só o Projecto de Lei n.º 384/VII (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 53, de 19 de Junho de 1997, pp. 1049-1056), da iniciativa do PCP, estabelecia a aplicação à união de facto do disposto no artigo 1676.º do Código Civil (dever de contribuir para os encargos da vida familiar), mas tal não passou ao texto da lei. Persistiu, assim, o que já foi considerado uma «originalidade» do tratamento da união de facto pelo legislador português (em comparação, por exemplo, com os regimes francês e brasileiro), e que consiste «na distinção entre um estatuto (...) 'social', que define os direitos das pessoas a viver em união de facto face aos organismos públicos e à sociedade em geral, e que foi progressivamente aumentando; e um estatuto (...) 'privado', relativo aos próprios direitos e deveres recíprocos entre essas pessoas, que foi sendo ignorado pela lei» (Rita Lobo Xavier, «Novas sobre a união more uxorio em Portugal», em Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Lisboa, 2002, pp. 1393-1406, em especial p. 1398).

    Na doutrina, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (obra citada, p. 69) referem que «não assumindo compromissos, os membros da união de facto não estão vinculados por qualquer dos deveres pessoais que o artigo 1672.º impõe aos cônjuges» (dispondo este preceito que «os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência»). Já José António de França Pitão (Uniões de Facto e Economia Comum, 2.ª edição, Coimbra, 2006, pp. 115-116) entende que «muito embora sem qualquer carácter sancionatório ou cominatório (...) existe um recíproco dever entre os membros da união de facto heterossexual em contribuírem para os encargos da vida familiar».

    Perante o silêncio da lei, o entendimento, acolhido no acórdão recorrido, de que existe uma diferença relevante entre a relação assente no casamento (na pendência do qual existe um dever de assistência recíproca entre os cônjuges) e a emergente de uma união de facto (na pendência da qual esse dever não está legalmente consagrado), constitui fundamento suficiente para que não se dê por verificada a violação do princípio da igualdade, enquanto proibição de soluções jurídicas arbitrárias, porque assentes em diferenciações carecidas de fundamento bastante à luz dos valores constitucionais pertinentes.

    É certo que se pode entender que «ao autonomizar o direito de contrair casamento (n.º 1), ao dedicar especial atenção aos requisitos, efeitos e formas de celebração do casamento e à sua dissolução (n.º 2), e ao se ocupar especificamente do estatuto dos cônjuges (n.º 3), o artigo 36.º da Constituição reconhece o papel especial do casamento (Acórdão n.º 57/95)» e que «da relevância assim atribuída ao casamento - e do reconhecimento (subjacente à importância constitucional conferida aos requisitos, forma de celebração e efeitos do casamento no artigo 36.º, n.º 2) do carácter institucional da relação conjugal adveniente da assunção de um vínculo de natureza pública através da celebração do casamento - resulta, concretamente, que, para o legislador constitucional, o casamento é o quadro institucional mais favorável em que a família se pode desenvolver» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Lisboa, 2005, pp. 398-399), de que resultaria para o legislador o dever de conferir «um tratamento preferencial à família nascida do casamento» (Rita Lobo Xavier, estudo citado, p. 1405). Este Tribunal, designadamente no Acórdão n.º 275/2002, através de considerações que foram retomadas nos Acórdãos n.º s 86/2007 e 87/2007, considerou constitucionalmente conformes medidas legislativas mais favoráveis para as pessoas unidas pelo casamento em confronto com os unidos de facto, designadamente enquadradas em «políticas de incentivo à família que se funda no casamento», desde que respeitados os limites da razoabilidade.

    Nesta perspectiva, poderia colocar-se a questão da constitucionalidade de soluções que, como a subjacente ao caso dos presentes autos, pode ser vista como envolvendo objectivamente um tratamento mais favorável aos unidos de facto e, consequentemente, desincentivadora da constituição de família «matrimonial»: para a viúva do sinistrado é patrimonialmente «preferível» manter a situação de união de facto (que se entendeu não afectar o seu direito a pensão vitalícia) do que contrair casamento com a pessoa com quem vive more uxorio, hipótese em que veria aquela pensão ser substituída pela percepção, de uma só vez, do triplo do montante anual da pensão. Para Nuno de Salter Cid (A Comunhão de Vida à Margem do Casamento: Entre o Facto e o Direito, Coimbra, 2005, p. 629), a propósito da previsão legal da perda do direito a pensões de sobrevivência por contracção de novo casamento pelos beneficiários (sem previsão de igual perda para a hipótese de o beneficiário entrar em união de facto), «estes convites à união de facto, em prejuízo do direito fundamental de contrair casamento, dificilmente podem resistir ao confronto com os artigos 18.º e 36.º, n.º 1, da CRP: para não se ofenderem estes preceitos constitucionais, impõe-se, pois, esta regra: sempre que o casamento ou o novo casamento implique a perda (ou a diminuição) de benefícios, dever-se-á considerar que a 'união de facto' ou a 'nova união de facto' do beneficiário acarreta o mesmo efeito».

    Este Tribunal, no citado Acórdão n.º 57/95, foi chamado, entre outras questões, a apreciar a constitucionalidade do tratamento fiscal alegadamente mais desfavorável do rendimento dos agregados familiares fundados no casamento em comparação com os contribuintes unidos de facto ou solteiros. Apesar de reconhecer que «a constatação de que a tributação conjunta dos rendimentos do agregado familiar, desacompanhada de um instrumento de correcção dos seus efeitos negativos, origina, por via de regra, uma discriminação fiscal da família baseada no casamento, em comparação com as uniões de facto e com as pessoas solteiras, esteve na base de declarações de inconstitucionalidade emitidas pelo Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha [Acórdão de 17 de Janeiro de 1957], pelo Tribunal Constitucional italiano [Sentença n.º 179, de 15 de Julho de 1976] e pelo Tribunal Constitucional espanhol [Sentença n.º 45/89, de 20 de Fevereiro de 1989]», o referido Acórdão acabou por considerar que as normas que estabeleciam a incidência do IRS sobre o conjunto dos rendimentos do agregado familiar na constância do matrimónio - e que constituíam um instrumento técnico constitucionalmente adequado de regulamentação do imposto sobre o rendimento «tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar» - não violavam o princípio da igualdade, já que não se configurava como arbitrária a distinção, para este efeito estabelecida, entre a família fundada no matrimónio e a união de facto.

    Também no presente caso, tendo em conta a diferenciação básica, no que respeita à existência do dever de assistência recíproca na pendência do casamento e na pendência da união de facto, que foi assumida no acórdão recorrido, não se pode dizer que viole o princípio da igualdade, por constituir uma solução desprovida de fundamento razoável, o entendimento de que a regra do n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127 não é aplicável quando a beneficiária de pensão estabelece uma união de facto. Trata-se de domínio que se encontra na liberdade de conformação do legislador, que, consoante atribua maior relevância à realidade «jurídica» da inexistência de consagração legal expressa do dever de assistência recíproca entre os membros da união de facto ou à realidade «social» de que será normal a prestação dessa assistência, assim não equiparará ou equiparará o estabelecimento de uma relação desse tipo à contracção de novas núpcias, para efeitos de determinar a substituição da pensão vitalícia pela percepção, de uma só vez, do triplo do montante actual da pensão. Daqui não se segue, como é óbvio, que se repute inconstitucional a solução que acabou por ser adoptada no artigo 20.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97; apenas se entende que esta não é a única solução constitucionalmente admissível.

    3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

    a) Não julgar inconstitucional a interpretação segundo a qual o disposto no n.º 3 da Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na redacção da Lei n.º 22/92, de 14 de Agosto, que determina que se o cônjuge sobrevivo de vítima mortal de acidente de trabalho contrair casamento receberá, por uma só vez, o triplo do valor da pensão anual, não é aplicável se o mesmo passar a viver em união de facto com outrem; e, consequentemente,

    b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.

    Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.

    Lisboa, 31 de Julho de 2008. - Mário José de Araújo Torres, relator - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Benjamim Silva Rodrigues (com dúvidas, que não consegui ultrapassar, por o referido considerado pelo acórdão recorrido - inexistência de obrigação de «amparo» relativamente ao unido de facto - não constituir uma inevitabilidade jurídica face ao sistema jurídico, onde é pensável a intervenção dos institutos do enriquecimento sem causa e do abuso de direito) - Rui Manuel Moura Ramos.

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